O Homem do
Cinema
Ele gostava de ir ao cinema sempre nos finais de tarde,
durante a semana de preferência, quando podia encontrar uma mulher do tipo que
preferia: sozinha, sentada, isolada; talvez como ele, aguardando uma companhia
para assistir a sessão. Quando achava esse tipo de parceiras: normalmente solitárias,
carentes, ansiosas, correspondentes, mãos suadas, cremosas, macias,
escorregadias; ele trocava olhares vãos durante algum tempo, a seguir ia ao
banheiro, se ajeitava, corrigia a aparência, passava cuspe nas sobrancelhas e
ao voltar sentava-se junto da nova namorada. Quando fazia isso tinha nas mãos algum
óbolo; um bombom, uma pipoca, algum presente introdutório e propiciatório que
dispensasse maiores conversas além de um
simples, "Aceita"?. Preferia namorar desse jeito, na penumbra, no
claro-escuro do lusco-fusco cinematográfico, lá onde a íris sofre para se
adaptar. Nunca aceitou namorar de outra forma. Todo seu namoro acabava antes do
fim da sessão, quando faltando cerca de dez minutos para terminar o filme dizia
que ia ao WC e não retornava mais. Já devia ter acumulado mais de cinqüenta,
mais que isso, namoradas entre as
diversas sessões de cinema em que conseguia ter sucesso, porém nem sempre tinha
sucesso. Certa vez, inclusive, teve de ficar com um travesti, por pouco tempo,
é verdade, pois o confundiu com uma garota, mas logo percebeu após uma inspeção
visual detida e ajudado pela afetação exagerada nos gestos e excesso de base de
má qualidade na face; levantou-se e foi ao WC, ninguém merece, disse, nem eu.
Quando não achava um par saía muito antes de o filme acabar, o filme não era
importante, exceto alguns poucos. Era uma forma diferente de namoro, um namoro
onde só se podia realmente ver a
silhueta e talvez um pouco do rosto da parceira quando a sessão clareava
estroboscopicamente. Não conseguia ver defeitos, amiúde, e preferia mesmos não
vê-los, tão detalhista que era, mas supunha que não conseguisse misses, mas
apenas bagulhos ornamentados. Não sabia se suas namoradas tinham pernas
grossas, bumbuns generosos, se eram elegantes, se trajavam bem, se tinham
dentição perfeita; no escuro todos os gatos são tardos, alguns tarados, outros
ainda retardados. Quando acontecia de encontrar alguém com um hálito pesado,
bafo de cebola, de alho, menstruada, ia ao banheiro imediatamente e não mais
voltava mais, embora a cena martelasse sua cabeça durante alguns dias. Se o
rosto estivesse ensopado demais de maquiagem ou se o perfume fosse muito
intenso, também procedia do mesmo jeito; preferia alguma alfazema barata a um
entediado perfume francês da Abon. Também não gostava de parceiras barrigudas,
que usassem cintas-ligas, parceiras babonas, velhas, parceiras com pontes
dentárias ou borborigmo intestinal perceptível, além das que falassem e rissem
muito alto. Era fã de gatinhas, mulheres
normalmente aparentando estar abaixo dos vinte anos. Detestava mulheres com
sutiãs muito armados, duros, ou as de peitos muito arriados, sem tecido mamário.
Mulheres com pouco turgor mamário não eram com ele. Prestava muita atenção no
cheiro do cabelo, posto saber existir mulheres que não lavam os cabelos
diariamente, a maioria, e normalmente
estão com mau cheiro no couro cabeludo e nos ouvidos; um cheiro particular, uma
inhaca, um rabugem. Detestava também aquela saliva que fica no canto da boca
ansiando para ser enxugada. Começava oferecendo um bombom, eu já disse
isso, falando do filme, batendo a coxa,
pegando na mão, enrolando os pés e a sucessão de eventos dependia da
receptividade da outra parte e da realização da parte dele de que tinha achado
alguém aceitável, alguma atriz. Era como se fosse um ator coadjuvante que
trabalhasse complementando o papel do ator principal. Procurava sempre
sincronizar seus beijos com os da tela, seus abraços com os da tela e se cena
ficasse caliente ele também procurava esquentar também. Normalmente dava seu
nome diferente a cada uma de suas flash namoradas. Um telefone também. Cada dia
tinha uma profissão diferente: dentista, médico e advogado eram as principais,
mas também foi piloto, militar, embora
detestasse alturas e caserna. Procurava sempre intervalar suas aparições nos
cinemas para não dar de cara com a mesma mulher, embora por duas ou mais vezes
isso já tivesse ocorrido. Nada que o impedisse de continuar fazendo, mas algo
que exigia uma pausa maior nas suas aparições. Quando isso ocorria, dizia que
seu telefone vibrou naquele momento, era um chamado urgente de algum paciente, e
ele teria de sair urgentemente do cinema. Nesses casos, ele pedia desculpas
pelo acontecido anteriormente e se retirava definitivamente da sessão. Nada
mais queria do que entrar na tela, viver na tela, sentir-se na tela, se
imaginar na tela, e isso exigia síncopes, cenas rápidas, vida pouco atribulada.
Viveu muitos romances dignos de Hollywood, mas sempre dentro dos cinemas onde
esteve. Fez o papel de vários galãs. Nunca teve uma namorada de verdade. Nunca
teve uma relação sexual de verdade. Colecionava souvenires de quem conseguia
extrair algum. Não se sentia anormal,
apenas se achava alguém injustiçado pela sétima arte. Estava escrevendo um
roteiro que prometia um dia filmar que se chamava O Homem do Cinema, que
contava a estória dele mesmo na sua interação com o filme.
Mas naquele dia John E. Motion foi ao cinema arranjar
uma nova namorada. Havia mais de seis meses que não fazia isso, desde que
encontrou uma das namoradas em um dos cinemas que costumava freqüentar e foi
aquele qüiproquó . Após várias trocas de olhares, de risinhos, de polegares
falando “posso ira aí?”, John levantou-se, foi ao banheiro, escovou os dentes,
penteou os cabelos, pôs perfume, testou o bafo contra a mão fechada, comprou um
Halls e foi até a poltrona da nova namorada.
- Oi, posso sentar aqui?
- Deve.
- Você não está esperando ninguém?
- Não.
-
Não leve a mal, mas não gosto de assistir filmes sozinho.
- Eu também não.
- Sabe, você é o tipo de mulher que eu
gosto. Naturalmente cheirosa, jovem, discreta no falar; acho que vamos nos dar
bem.
- Que filme estranho esse que vamos
assistir; li a resenha, disse a moça.
- É sobre o quê? perguntou-lhe John.
- Você não lê sobre os filmes que vai
assistir?
- Não, nunca leio; também não gosto da opinião
da crítica; construo a minha própria opinião.
- Que chique! disse a moça.
- É sobre o quê, já que você leu?
- É sobre um cara que só namorava no
cinema e antes do filme acabar deixava as namoradas sozinhas.
- Interessante, alguém me copiou, eu estava
escrevendo um roteiro desses?
- A vida é assim mesmo, sempre que a
gente tem uma boa idéia um bocado de gente já teve antes.
"Ela está sem sutiã", disse para si
mesmo, e os seios são duros e empinados.
E John E. Motion foi perscrutando o
corpo de Aparecida, sentindo a firmeza das suas coxas, o calor dos seus beijos,
seu hálito agradável e perfumado. Foi apalpando, apalpando, subindo, subindo,
subindo... “Nossa parece que está sem calcinha também”.
Vou poupar o leitor das descrições
indiscretas - que devem ficar por conta de cada imaginação - que ocorriam à
medida que John subia com os seus dedos e ia descobrindo reentrâncias e
saliências, resistências e complacências como se estivesse lendo uma escrita em
braile.
- Sabe o que eu acho, disse a moça Aparecida?
- Diga, quero saber.
- Esse casal aí da tela bem que poderia ser
nós dois aqui nos apalpando.
De repente o ator do filme saiu da tela e
disse para os dois:
- Oi, amigos, não roubem a cena, os atores
aqui somos nós, vocês são expectadores.
- Você ouviu o que eu ouvi? perguntou John
a Aparecida.
- Ouvi sim, mas já estou acostumada a
roubar a cena.
- Mas assim, desse jeito, daqui a pouco
chega o vigilante com uma lanterna, falou John.
E
o filme foi transcorrendo tal e qual o momento de John E. Motion e Aparecida
Mae Dream. Aparecida então falou para John:
- Vou ali ao banheiro. Vou me ajeitar que a
sessão está próxima de terminar e eu não posso aparecer assim quando as luzes
se acenderem.
- Vá, mas não demore, disse John, hoje eu
vou até o fim...
De repente alguém aparece e bate no seu
ombro.
- Acorda, acorda, rapaz, a sessão já
terminou.
John tomou um susto grande quando olhou para
cima notou que o porteiro do cinema estava junto dele.
- Poxa, cara. Dormi. Dormi profundo. E a
garota que estava ao meu lado, você a viu?
- Não havia ninguém com você não, hoje
você assistiu a sessão sozinho, disse-lhe o porteiro!
Lauro
de Freitas, 23 de maio de 2010.
Ruy
Penalva