Dona Aurinda
e o Very Good
Dona Aurinda costumava
contar uma anedota sobre um médico do interior que formou o filho em medicina,
se aposentou, e lhe passou a clientela. O primeiro caso atendido pelo novo doutor foi um paciente do pai, que tinha úlcera no estômago; ou
seria no duodeno?; que o filho curou em
30 dias e foi recriminar o pai lhe dizendo:
-
Meu pai,
eu curei o senhor fulano de tal em 30 dias e o senhor não conseguiu curá-lo
durante uma vida. Ao que o pai lhe retrucou:
-
Mas se
curasse todo paciente em 30 dias eu não tinha conseguido formá-lo…
Conheci um mecânico que
fazia a mesma coisa, ou algo mais elaborado: consertava uma coisa e quebrava
outra, sem contar que dizia ter trocado várias peça do carro sem tê-lo feito, o
nome dele é Aurélio.
Antigamente, não havia
e-mail, havia telegrama mesmo, pela ECT – Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos. Um telegrama demorava cerca de
5 a 7 dias para ser entregue, uma carta simples 15 dias, uma carta
registrada demorava um mês. Se alguém precisasse algo mais rápido tinha de
passar um telegrama pela Western Telegraph, uma empresa americana, que também
operava serviços postais não subsidiados no Brasil. Era conhecido o termo “passei
um Western” equivalente ao “mandei um sedex” de hoje.
Brasileiro sempre tem um
jeitinho, uma maneira de conseguir sobreviver. Em idos tempos, funcionário
público ganhava mal e trabalhava até muito,
diferente de hoje que ganha até bem e não trabalha quase nada, tudo peixe, nada.
O pessoal do ECT então ganhava péssimo, mas dava um jeitinho, principalmente o
pessoal dos caixas que operava - dá uma
vontade de escrever operavam - pessoal, aquelas máquinas analógicas pré-históricas,
barulhentas, decibelômetras, uma espécie de computador à manivela. Somavam, registravam, carimbavam
e a seguir abriam suas enormes gavetas para disponibilizar o troco. Ninguém
tinha lesão por esforço repetitivo, coisa de tempos modernos. Lê tá com LER, lé
com cré, dourada Creusa.
Quando alguém era breve e
conciso dizia-se que era telegráfico, tipo: Chego amanhã noite. Bjs Fulano; ao
invés do: Querida, eu chego amanhã de noite, viu Bem! Bjs do seu Fulano de Tal.
Ora, o telegrama era pago por números de palavras, que formavam faixas de
preço. Quando alguém não era telegráfico, era prolixo, e saía sem pedir recibo,
o agente postal editava o texto, tirava os artigos, as conjunções, as
preposições, os excessos, e o telegrama caía de preço. No final do expediente
toda sobra de caixa ia para o bolso do caixa e isso podia representar até uma
fração razoável do salário baixo. Isso era o Very Good, provavelmente homenagem a algum gringo VG. Esse verigud era
um complemento absolutamente necessário no orçamento do funcionário, não dava
mais pra viver sem ele. Numa repartição calorenta, sem conforto, com banheiros
fedorentos, privadas infiltradas de óxido de ferro, só o verigud e a amizade
dos colegas compensavam. Aqui e acolá chegava um matuto pobre querendo passar
um telegrama e por pura pena o próprio funcionário redigia, sem o verigud, claro. Mas nesse caso tinha a
gorjeta do agradecido cliente, quase sempre.
Quando o cliente queria recibo aí não tinha verigud. Very Good era toda
sobra de caixa, mas não raramente podia haver falta no caixa por algum troco
errado, quando então se tornava Very Bad, presume-se. Com o VG se podia comprar
nos pequenos mercados, comprar acarajé, pão, pois não havia essa fartura farta
de hoje em dia, que exige muito dinheiro para viver. Na porta do cinema Guarany,
depois Glauber Rocha, tinha uma baiana que vendia uns acarajés com camarões
espetados que eram uma delícia. Se comprava com o quê? Com o verigud, claro.
Tudo está bem quando
termina bem e o VG parecia uma coisa que fluía; tinha a cumplicidade de todos,
exceto a cumplicidade dos que não trabalhavam nos caixas e não tinham o verigud.
Funcionário público se virava. Ora fazia um crediário num carnê, comprava na
venda com caderneta. Ostra, sarnambi eram comida de pobre e se comia à vontade
àquele tempo. Também vez por outra os
funcionários se complicavam nas mão de agiotas que emprestavam a 5% ao mês,
metade do que cobram os bancos brasileiros de hoje sem inflação. Sempre havia
um caixa para os endividados serem contemplados nas primeiras prestações e se
torcer para que pagassem as últimas, mas a inadimplência não era tão alta, pois
nesse intermezzo ele fazia outro caixa para pagar o caixa anterior, uma técnica
que se chama bicicleta. Dona Aurinda foi a precursora da expansão do crédito mundial com essa frase
lapidar "Se Deus vender à prestação eu compro" quando perguntada pelo
filho se ela lhe podia dar o mundo todo, pois ele não queria só um pedaço.
Vejam que sapiência de Dona Aurinda: o problema não era o valor do bem, mas um
valor de prestação que coubesse no seu orçamento, e esse é o princípio da
teoria do crédito. Como disse Zaratrusta: "Caro é o que não tem
preço". Tudo que tem preço é barato, pois é adquirível.
Os tempos foram passando,
o guri de Dona Aurinda foi crescendo, até que adquiriu certa independência
econômica. Quando soube que ela ainda persistia no Very Good a aconselhou a
deixar a prática, posto que ele podia muito bem suprir aquela fonte perene de
recursos verigudescos. Dona Aurinda deixou?
Nada, continuou às escondidas até o dia que a coisa foi descoberta e Dona
Aurinda se viu em palpos - dá vontade de escrever palcos - de aranha. Abriu-se
um sindicância interna, funcionários foram demitidos e Dona Aurinda exilada
para uma repartição de um bairro periférico, um espécie de Tártaro da mitologia
grega. Foi pro Curuzu.
- Não te disse, falou-lhe
seu ex-guri, agora vou te dizer uma coisa que a senhora dizia pra mim: "Quem
não ouve conselho, ouve coitado". Dona Aurinda fez um muxoxo.
- Mas era tão bom... disse Dona Aurinda. Lembra da estória do
médico? Ajudou a te formar...
O Very Good devia ser bom
mesmo. Não tão bom quanto aquela brincadeira de balão-beijo que uma garota de
Salvador tentou ensaiar com o filho de Dona Aurinda quando ele era ainda
menino, e que ele recusou, embora estivesse morto de vontade de dar um beijo
naquela assanhada que a terra se encarregou de destruir ainda muito cedo, muito
bonita ainda, já agora casada, mas não mais disposta a brincar de balão-beijo
com ele.
Caros amigos, por mais que
um coisa seja errada só se arrependam do que vocês não fizeram; o que fizeram é
experiência que pode ser revivida e redeliciada. A vida é um filme cada dia
mais modorrento no presente e mais incerto no futuro, só nos resta fazer um
rebobinamento no rolo da memória e aqui e ali se lembrar do que valeu e do que
não valeu. A terra comeu Dona Aurinda e um dia vai comer o filho dela também - vixe - depois será a vez de comer a quem está no aquém do além. A
vida não é um Very Good in spite of a
vida é um Very Uncertain.
Todo balão se apaga, nem
todo beijo afaga, mas não é por isso que você vai parar de beijar todo mundo
que possa.
Lauro de Freitas, 22 de março de 2011.
Ruy Penalva
Nenhum comentário:
Postar um comentário